David Cameron: "Tenho um medo terrível de desiludir as pessoas"

Quem é David Cameron, o PM britânico que procura a reeleição? A jornalista Jenni Russell acompanhou o político para a revista do <em>Sunday Times</em>. Um exclusivo que o DN publica, hoje e amanhã.
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David Cameron perdeu seis quilos desde o Natal, renunciando a bolachas e amendoins e cortando nos hidratos de carbono, mas nesta fria manhã cinzenta num pequeno hotel, numa saída da M6, está a comer uma fritada: ovos, salsichas, cogumelos, torradas e tomate. Ele serve o seu próprio pequeno-almoço do buffet e, ao sentar-se a uma mesa com os seus assessores, diz, com um leve ar de rebeldia: "Hoje não estou a fazer a minha dieta." Ninguém diz nada. Ele é o primeiro-ministro. Ninguém vai questionar a sua opção.

Ao jantar com cinco de nós na noite anterior, no final de um longo dia de visitas, discursos, entrevistas e selfies, Cameron emanava energia. Tinha tirado o fato e vestido um polo azul e um pulôver, mandado vir uma caneca de cerveja seguida de lulas e entrecosto e tinha descontraído visivelmente. Mostrou-se expansivo e divertido, quer a falar sobre a convicção de Tony Blair de que a sua bondade intrínseca justifica o facto de lidar com tiranos, ou sobre como a sua filha Florence, de 4 anos, ficará triste quando o seu guarda-costas favorito, que vê Frozen voluntariamente com ela todas as semanas no banco de trás do carro, mudar para um novo posto ao terminar a sua comissão de três anos. Nesta manhã, ele está absorto nos seus pensamentos, levemente irritável e tenta passar despercebido.

O silêncio tímido que se instala na mesa é quebrado apenas pelos assessores que lhe dizem o que ele precisa de saber. São 07.45 mas o primeiro-ministro já está a trabalhar há duas horas. Ele pode andar na estrada, mas a sua rotina diária, de se levantar antes das 05.45 para passar em revista os documentos na sua pasta vermelha, não é alterada. Foi instalada uma linha informática segura no hotel e os documentos foram impressos durante a noite. Toda a gente no governo que tinha solicitado uma decisão dele ontem à noite sabe que a terá na sua mesa pelas 08.00.

O BlackBerry de um assessor dá sinal e ele passa-o ao primeiro-ministro: um relatório de segurança e informação sobre vigilância vai ser divulgado às 10.00; ele pode ser questionado sobre isso. Cameron pede uma atualização sobre o assunto. "Aprovei isso há tanto tempo que preciso que me recordem os detalhes." Toca o telefone dele: é Craig Oliver, diretor de Comunicação de Downing Street, querendo a sua reação à exigência de Nigel Farage de que a Lei de Relações Raciais [Race Relations Act] seja posta de lado. Cameron é devastador. Ele parece genuinamente chocado. Farage, diz ele, está desesperado por atenção. Terminada a chamada regressa à sua leitura.

David Cameron é um primeiro-ministro com um problema. Ele não ganhou as últimas eleições e também não está no caminho para ganhar estas. Ele está a candidatar-se à reeleição numa plataforma presidencial - escolham-me a mim e não ao outro -, no entanto, mesmo após cinco anos no poder e uma década na política de topo, o país ainda não tem a certeza sobre quem ele é. Será um conservador genuinamente sensível, cuja agenda mais afável e mais justa saiu do bom caminho devido à crise financeira ou será um thatcherista janota com um coração de pedra, secretamente aliviado por todas aquelas coisas atenciosas, empáticas serem agora desnecessárias? Estará a ver coletâneas de DVD enquanto a Grã-Bretanha se desintegra ou será um primeiro-ministro trabalhador e capaz? Mesmo alguns dos seus antigos aliados estão perplexos. "Ele posiciona-se atualmente numa plataforma tão de direita, estreita e severa - toda cortes, imigração e segurança social -, é terrível. Não lhe vai dar a maioria", diz um deles. "Pergunte-lhe o que aconteceu com aquela história da ecologia, do socialmente liberal e da justiça social", diz outro. "Ainda pensa assim? Havia alguma verdade nisso? O que aconteceu?" Quando eu faço estas perguntas a Cameron, o que é revelador é que elas não fazem qualquer sentido para ele. Fica surpreendido, mesmo levemente ofendido, por haver alguém que possa pensar que ele mudou. O défice obrigou-o simplesmente a reordenar as prioridades. Descreve-se sem hesitação como uma "pessoa profundamente sensível" que recebeu uma herança terrível. Acredita que fez os cortes nas despesas de "forma sensível, compreensiva e decente" e que protegeu os mais pobres. Não é que esteja inconsciente de sua imagem. "Abri um jornal e vi alguém a empunhar um cartaz que dizia "Cameron, o Carniceiro da Grã-Bretanha" e pensei: hein?!" Ele cala-se, balançando a cabeça, perplexo, sem palavras.

Cameron não entende a pergunta, porque a sua política não é formatada pela ideologia, mas pela educação e pelo instinto. É o político menos teórico que já conheci. Ele não interpreta as suas ações em termos de thatcherismo, liberalismo, mercado livre ou pequenos estados, o que lhe torna difícil perceber porque os outros pensam que trocou uma posição ideológica por outra. A sua bússola, quer esteja a apoiar o casamento homossexual, a cortar custos na defesa ou a introduzir o bedroom tax (imposto sobre as habitações sociais subocupadas), é bem diferente. É uma palavra que ele usa mais do que qualquer outra quando o entrevisto.

"Espero que as pessoas vejam que eu sou... uma pessoa razoável, que estamos a fazer coisas razoáveis. Acho que a razoabilidade é muito subestimada na política. Claro que as pessoas fazem críticas legítimas, mas tenho esperança que digam: "Tendo em conta tudo isso, ele tentou uma abordagem razoável"." É certamente um slogan invulgar.

A "razoabilidade" não é uma característica muito espetacular. É difícil vê-la como uma palavra de ordem num comício. "O que queremos?" "Razoabilidade!" "Quando é que a queremos?" "Agora!" Se uma coisa é razoável ou não, é, naturalmente, uma questão de perspetiva. Para um homem numa casa camarária no condado de Durham que não consegue encontrar emprego porque não há nenhum, os planos conservadores para limitar benefícios e cortar serviços locais enquanto rejeitam um imposto sobre residências de luxo, são escandalosamente injustos. No sentido em que Cameron o usa é um termo profundamente conservador. É baseado em princípios que parecem tão óbvios para ele que os vê como senso comum e não como escolhas políticas. Incentivar os criadores de riqueza, manter os impostos baixos, pagar as suas dívidas, trabalhar se se for fisicamente capaz, defender os idosos e os verdadeiramente incapacitados. É esta a chave para o compreender. Cameron diz-me que recebeu o seu sentido de razoabilidade da mãe dele.

As minhas 24 horas a acompanhar Cameron começam na estação de Euston, no dia anterior ao seu silencioso pequeno-almoço, onde o bando de guarda-costas, assessores e fotógrafos de visita passa as barreiras a um ritmo tão rápido que o pessoal ferroviário, de boca aberta, recua sem pedir os bilhetes. Anda em digressão pelo país três dias por semana atualmente, a caçar votos e a fazer comunicações. Estamos de partida para as West Midlands, uma das três regiões que os conservadores têm como alvo em maio, porque tem muitos assentos marginais no Parlamento.

Duas horas mais tarde, entramos no Centro Nacional de Exposições, perto de Birmingham. Umas duas mil crianças em idade escolar estão a fazer experiências de ciência. Vinte delas gritam de excitação quando Cameron, com as equipas de televisão a reboque, se ajoelha para participar nas experiências da mesa delas. Uma multidão de adolescentes aos guinchos, levantando os seus telefones, reúne-se à nossa volta. Vários pedem - e obtêm - selfies com ele. Conforme avançamos para cada novo expositor, seguir Cameron começa a parecer que estamos a seguir o flautista de Hamelin, mas com histeria adicionada.

Seria errado confundir a excitação da celebridade com entusiasmo político. Alguns rapazinhos à minha volta gritam, trocistas: "Oi, Dave!" Pergunto a uma menina de 12 anos que, sem fôlego, luta para manter o telefone ao alto se ela gosta dos conservadores. Naa..., diz ela. Então porque está a tentar tirar uma fotografia? "Para poder pôr no Facebook."

O aperto em torno de Cameron, agora cem vezes maior, fica tão intenso que a segurança termina a visita. Saímos por uma porta lateral. Cameron está sereno, mas acontecimentos como este alarmam a sua equipa de segurança. Um deles disse-me que costumavam manter uma zona de clareira em torno do primeiro-ministro, mas a cultura das selfies mudou tudo. Agora as pessoas conseguem chegar suficientemente perto para o tocar. "O nosso trabalho não é apenas o de proteger o primeiro-ministro, mas também a dignidade do cargo de primeiro-ministro", diz ele.

Depois de algumas entrevistas para a rádio, corremos para um hotel de Birmingham. Cameron tem noventa minutos para ler os documentos da sua pasta e para pequenas reuniões antes de aparecer ao vivo no noticiário regional. A sua primeira prioridade é ir fazer uma corrida de 5 km. Diz-me que é assim que descontrai. Isso e adormecer no sofá, no final do dia, após trinta minutos de telelixo.

O fotógrafo e eu saímos para apanhá-lo a subir a ponte sobre o canal. "Este não é um desporto de espectadores", protesta enquanto passa por nós a correr. Mas ele não tem nada com que se preocupar. Está com um aspeto muito mais apto e elegante do que no Natal; a sua barriga desapareceu. É acompanhado pela sua equipa de seguranças. Quando se tornou primeiro-ministro, alguns membros da segurança não o conseguiam acompanhar. Agora é um requisito que todos ao seu redor sejam corredores.

Quando ele está em Downing Street, a sua equipa abre janelas minúsculas na sua agenda em que ele pode estar sozinho. Se não tiver um almoço oficial sobe ao apartamento durante vinte minutos, onde passa cinco minutos a fazer para si próprio uma sopa ou uma tosta com sardinhas e outros quinze a tratar de papelada. Quando conheceu Barack Obama, enquanto ainda estava na oposição, o presidente disse-lhe para arranjar tempo para pensar na sua agenda. Isto é o mais perto disso que consegue chegar.

Esta tarde, Cameron está sentado totalmente só na vasta sala de estar da sua suíte no 26.º andar, com os calções de corrida ainda vestidos, trabalhando afincadamente com os seus papéis, em silêncio total, escrevendo cuidadosamente três ou quatro frases no topo de cada folha.

Um dos seus ex-assessores diz que Cameron se orgulha de ser um solucionador de problemas. A melhor maneira de prender a sua atenção é para presenteá-lo com algo que outros não consigam resolver.

Quando, mais tarde, digo isto a Cameron, ele objeta: "Ah, não sei... Muitas vezes olho para um problema e penso: "Oh meu Deus, eu não sei a resposta para este"." Muitas vezes, diz ele, "está-se à procura da opção menos má. Às vezes, alguma coisa já correu mal antes de chegar a nós - um programa de governo que está esgotado e não funciona. O que fazer? Acabar com ele e começar de novo? Reformá-lo e torná-lo melhor? Mudar a gestão? Não se pode dizer qual a opção que irá funcionar, mas tem de se tomar uma decisão". O seu instinto é trabalhar depressa. "Se atrasarmos tudo, ninguém sabe o que o chefe pensa, ninguém sabe qual é a direção a seguir, nada pode ser feito." Mas outra pessoa de Downing Street diz-me que ele pode ser demasiado rápido. "Às vezes ele toma decisões muito despreocupadamente e temos de lhe dizer "não, na verdade, primeiro-ministro, o senhor tem de analisar melhor isto"."

Cameron diz que tenta não ficar a pensar em erros e arrependimentos, mas alguns ficam-lhe a moer no pensamento. Os dois que nomeia são um par surpreendente: a lacuna na capacidade britânica em porta-aviões e a qualidade dos cuidados aos idosos com demência. "Pondera-se sobre as coisas. Mas tudo tem que ver com decisão. Todo o sistema entra em colapso se não se avançar."

Ao entardecer, dirigimo-nos para os estúdios de TV numas instalações ao longo dos canais. Sem equipas de televisão ao nosso lado, quase ninguém se apercebe do primeiro-ministro a passar. Ele é frequentemente invisível à vista desarmada. Diz-me que a celebridade deve tê-lo mudado, mas é difícil perceber como. "Suspeito que é um pouco como ferver um sapo - acontece muito lentamente."

Cameron está bem preparado quando chegamos ao estúdio da televisão. Mas é apanhado de surpresa no ar quando a apresentadora termina a sua entrevista questionando-o sobre a confusão na sessão de Perguntas ao Primeiro-Ministro dessa manhã. Cameron é forçado a ver-se a criticar Ed Miliband por este ponderar um acordo com o Partido Nacionalista Escocês.

Depois confessa-me como estava apreensivo durante a emissão do fragmento. Ele nunca vê as gravações das PPM. "Estava a pensar "Aquilo foi uma gritaria; foi terrível. Oh meu Deus, oh, por favor, temos mesmo de ver?"" As PPM são, diz ele, a pior parte da sua semana. As manhãs de quarta-feira são dedicadas a preparar-se para aquilo, mas chega a um momento em que ninguém pode fazer mais nada e ele está por sua conta.

"É aquele tipo de antecipação, quando estamos sentados no gabinete e a pensar, "Oh, meu Deus, o que é que vai ser esta semana? O que vou eu apanhar? Meu Deus, isto é um pesadelo"." Prepara-se então para o que está para vir. "Aquilo é um maldito poço de víboras, lá dentro. É como os romanos a ir para o Coliseu. É os cristãos ou os leões. Faça a sua escolha. Não é uma visão bonita. Mas ficamos em perigo, se não fizermos valer os nossos pontos de vista muito vigorosamente, acabamos como a..." Faz uma pausa. "A... comida de leão."

The Times/News Syndication/ Atlântico Press

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